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27 out

Em uma era onde a medicina avança a passos largos, tanto os médicos quanto os pacientes se deparam com um cenário repleto de nuances legais. A responsabilidade civil médica não é apenas um conceito abstrato – é uma realidade tangível que impacta o dia a dia dos profissionais da saúde e dos pacientes.

Todos os dias, milhares de procedimentos médicos são realizados no Brasil, e em muitos deles, surge a indagação: quem é responsável quando algo dá errado? Entender a responsabilidade civil médica não é uma opção – é uma necessidade.

Neste guia, desvendaremos os mistérios por trás desse conceito, iluminando suas implicações e mostrando como a ética e a lei se entrelaçam nesse contexto.

  1. O que é a Responsabilidade Civil Médica?

A responsabilidade civil médica refere-se à obrigação do médico de reparar os danos causados ​​ao paciente em razão de uma falha, seja ela por negligência, imprudência ou imperícia. Esta responsabilidade pode ser subjetiva, quando exige a comprovação da culpa, ou objetiva, quando o mero fato do dano gera a obrigação de repará-lo.

Importante destacar que a responsabilidade do médico será, em regra, averiguada no âmbito subjetivo, ou seja, com a necessária demonstração do ato culposo do clínico. Assim, ensina-nos o prof. Dr. Miguel Kfouri Neto: “… A responsabilidade do profissional da medicina, entre nós, continua a repousar no estatuto da culpa, incumbindo à vítima provar o dolo ou a culpa stricto sensu do agente, para obter a reparação do dano”.[i]

Do lado oposto, há a responsabilidade objetiva, onde a simples ocorrência de um dano, ligado à ação médica, já determina a necessidade de indenizar o paciente, independentemente de se comprovar a culpa do profissional. É o caso de clínicas, hospitais e laboratórios, por exemplo, quando o dano for decorrente de falha no serviço[ii].

Assim, essa modalidade é explicada da seguinte forma pela Dra. Patrícia Rizzo Tomé[iii]:

“[…] a responsabilidade objetiva dispensa a comprovação da existência de conduta culposa, bastando a comprovação do dano e do nexo causal entre a conduta e o resultado, em duas hipóteses: 1) nos casos previstos em lei; 2) quando a natureza da atividade desenvolvida pelo autor do dano gerar perigo de risco de dano aos direitos de outrem”.

Essa diferenciação é essencial para entender os caminhos jurídicos em casos de possíveis erros médicos. Além dos acessórios financeiros, a responsabilidade civil médica serve como um instrumento de aprimoramento das práticas médicas, proporcionando maior segurança e confiança na relação médico-paciente.

A responsabilidade civil médica, sendo assim, pode emergir de três deslizes principais da culpa stricto sensu: negligência, imprudência e imperícia. Mas a responsabilidade não é atribuída automaticamente, ela precisa ser provada pelo Autor da ação judicial.

  1. As Três Faces da Culpa Médica

Ao falar de responsabilidade civil médica, é vital entender as nuances da falha médica. Elas são categorizadas, como já explicitadas, em três tipos principais: negligência, imprudência e imperícia. Cada uma tem características específicas e compreendê-las é fundamental para identificar quando um profissional da medicina errou em seu ofício.

  • Negligência: Ocorre quando o profissional se omite, ou seja, deixa de tomar uma atitude necessária em determinada situação clínica. Por exemplo, imagine um paciente internado com sinais de infecção, como febre e alterações nos exames de sangue. Se o médico responsável não solicitar exames adicionais, não alterar a medicação ou não dar atenção ao caso, levando a um agravamento do quadro clínico do paciente, esse ato relapso pode ser caracterizado como negligência.
  • Imprudência: Manifesta-se quando o médico age com precipitação, tomando decisões açodadas ou realiza procedimentos sem a devida cautela ou prudência. Tal como, um cirurgião que decide operar um paciente sem realizar todos os exames pré-operatórios necessários, correndo riscos desnecessários, com temeridade. Se essa cirurgia resultar em complicações que poderiam ser evitadas com uma avaliação prévia adequada, a falha se caracteriza como imprudência.
  • Imperícia: Está relacionada à falta de habilidade técnica, ou seja, quando o profissional não possui formação ou treinamento adequado para realizar determinada ação ou procedimento. A título de exemplo, um médico generalista que tenta realizar uma cirurgia cardíaca complexa, sem ter a formação ou a experiência necessária em cardiologia, e causa danos ao paciente, age com imperícia. Mesmo que sua intenção tenha sido a melhor possível, a falta de competência técnica comprovada pode gerar o dever de indenizar o paciente pelo erro.

Essas distinções são elementares, não apenas no âmbito jurídico, mas também no campo da ética médica. Elas orientam a formação e a prática dos profissionais, garantindo que os pacientes recebam o melhor atendimento possível.

  1. A Diferença entre Responsabilidade Civil e Ética Médica

Ainda que ambos os conceitos estejam interligados, a responsabilidade civil lida com as peças de danos no âmbito jurídico, enquanto a ética médica aborda os princípios morais e a conduta profissional do médico. Entretanto, essa não é o espeque deste artigo. Por essa razão, não aprofundaremos na diferenciação.

  1. Os Desafios da Prova no Processo judicial de Responsabilidade Civil Médica

Estabelecer a culpa médica em um cenário judicial é frequentemente um processo intrincado, mergulhado em nuances e especificidades. O cerne dessa discussão orbita em torno do nexo causal. Sem esse, torna-se impossível atribuir responsabilidade ao médico.

Mas o que realmente é esse nexo causal? Trata-se da ligação incontestável entre a ação (ou omissão) do médico e o prejuízo sofrido pelo paciente.

Muitas vezes, esse elo não é transparente, e sua definição se perde em uma teia de possibilidades e incertezas. Imagine um paciente que, após uma cirurgia, apresente complicações. Seria uma técnica cirúrgica que as causou e o cirurgião é o culpado? Ou talvez uma condição preexistente desconhecida que exacerbou o problema?

Nesses momentos, desvendar a verdadeira origem do dano torna-se uma investigação digna de detetive, onde cada detalhe importa.

Esses profissionais, dotados de vasta experiência e conhecimento, são capazes de decifrar, por meio de análises meticulosas, se o dano foi realmente uma consequência direta da ação médica ou se outros fatores externos são os causadores do evento adverso.

Nessa busca por esclarecer a ligação, a análise perita de especialistas no campo médico é frequentemente uma chave para desvendar o mistério. Tudo isso feito pela perícia médica.

A perícia no processo de responsabilidade civil médica é uma ferramenta essencial para avaliar se ocorreu ou não falha profissional que causou dano ao paciente.

Realizada por um perito médico, essa análise técnica busca questões específicas do caso, como a existência de nexo causal entre a conduta médica e o dano sofrido pelo paciente.

Através de um laudo pericial, o especialista apresentará suas conclusões, que auxiliarão o juiz na tomada de decisão quanto à responsabilização ou não do médico. Em muitos casos, o resultado da perícia é determinante para a sentença do processo.

Por fim, é essencial entender que, no universo médico-jurídico, a certeza absoluta é rara. O que se busca é a convergência de evidências, o peso da probabilidade, que, quando apontado para um lado, aponta a direção da justiça. E nesse equilíbrio delicado, o nexo causal se destaca como a pedra angular, o ponto de partida e chegada de qualquer argumentação sobre a responsabilidade médica.

 

  1. Delimitando a Ausência de Responsabilidade Civil Médica

A medicina é uma ciência complexa e repleta de variáveis. Mesmo seguindo todos os protocolos, há momentos em que os resultados não são os esperados, e o dano ocorre. No entanto, nem toda adversidade vivenciada por um paciente é motivo para imputar responsabilidade civil ao médico. Algumas situações podem eximir o profissional desse dever.

Vamos explorar as causas excludentes de responsabilidade civil e as de ilicitude:

5.1. Causas excludentes de responsabilidade civil

Já sabemos que a responsabilidade civil visa reparar o dano causado a um paciente em decorrência de ato cometido pelo médico. Entretanto, mesmo que haja dano e nexo causal entre o ato e o prejuízo sofrido, existem situações previstas em lei nas quais a responsabilidade de indenizar do médico é afastada. São as chamadas causas excludentes de responsabilidade civil. Elas são definições em quatro categorias principais:

  • Culpa Exclusiva do Paciente: Quando o dano ocorrido é resultado exclusivo de atitude ou negligência da própria vítima, o agente causador do dano é isento de responsabilidade. Por exemplo, se um paciente não seguir as orientações médicas pré ou pós-cirurgia e causar danos, o médico não poderá ser considerado responsável pelos danos causados.
  • Força Maior e Caso Fortuito: São eventos imprevisíveis e inevitáveis ​​que independem da vontade ou ação do médico e que causam um resultado dano ao paciente. Eles quebram o nexo causal, ou seja, a relação direta entre a ação do médico e o dano ao paciente. Um exemplo pode ser um apagamento súbito da energia elétrica devido a uma tempestade inesperada e, consequentemente, não consegue realizar um procedimento cirúrgico, não pode ser responsabilizado por eventuais danos causados ​​ao paciente devido a essa situação extraordinária. Se os geradores do hospital também falharem em um evento totalmente atípico, o médico não poderá ser responsabilizado por danos decorrente desse imprevisto.
  • Fato concorrente: Essa excludente ocorre quando a conduta tanto do agente (por exemplo, o médico) quanto da vítima (por exemplo, o paciente) contribui para o resultado danoso. Ambas as partes possuem parcela de culpa pelo ocorrido. Na responsabilidade civil médica, o fato concorrente pode atuar para reduzir ou até mesmo excluir a responsabilidade do médico, dependendo do grau de culpa atribuído a cada parte. Suponhamos que um médico prescreva um medicamento específico para um paciente com uma condição cardíaca. O médico orienta claramente o paciente a tomar uma pílula por dia. No entanto, o paciente, achando que isso aceleraria sua recuperação, decidiu, por conta própria, tomar três pílulas por dia. Como resultado, ele sofre uma complicação grave. Neste caso, embora o medicamento prescrito possa ter contribuído para a complicação, a conduta imprudente do paciente também teve um papel fundamental no resultado adverso.
  • Fato de Terceiros: Quando o dano é causado pela ação de uma terceira pessoa, que não é o médico em questão, esse é isento de responsabilidade indenizatória. Supomos que, após uma cirurgia, um enfermeiro administre um medicamento errado que cause danos ao paciente. Neste caso, a falha é da enfermagem e não é necessária.

O entendimento dessas nuances é substancial, tanto para médicos quanto para pacientes. Ambos devem estar cientes dos direitos e deveres na relação médico-paciente, promovendo uma prática médica mais transparente, segura e fundamentada na confiança mútua.

5.2. Causas excludentes de ilícito civil

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 188, elenca as causas excludentes de ilicitude, que são específicas e que a prática de ato determinado, mesmo prejudicando terceiros, não é considerada ilícita. No contexto da responsabilidade civil médica, a compreensão dessas exclusões é fundamental, pois elas têm o poder de evitar as obrigações de indenizar. A seguir, exploraremos essas causas e como elas se aplicam na medicina:

  • I – Defesa Legítima: A defesa legítima ocorre quando alguém repele uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, usando moderadamente os meios necessários. É claro que essa situação dificilmente será aplicada em ocorrência de responsabilização civil na medicina. No entanto, podemos considerar situações onde o médico, ao ser agredido fisicamente por um paciente ou familiar, reage para se defender. Se sua ocorrência for proporcional e necessária para repelir o ataque, será amparada por essa exclusão.
  • II – Estado de Necessidade: O estado de necessidade se dá quando alguém pratica um ato para salvar direito próprio ou alheio de perigo iminente, que ele não provocou, nem poderia de outro modo evitar, desde que o sacrifício do direito ameaçado seja menor que o direito salvo. Imagine um cenário em que dois pacientes em estado crítico precisam o mesmo equipamento para sobreviver, mas um deles tem uma chance significativamente maior de recuperação. O médico optou por utilizar o equipamento naquele paciente com maior probabilidade de sobrevivência, resultando eventualmente óbito do outro. O médico tomou uma decisão difícil com base no estado de necessidade, priorizando a maior chance de salvar uma vida.
  • III – Exercício Regular de um Direito Reconhecido: O indivíduo maior de idade dentro dos limites reconhecidos pela lei, exercendo um direito que lhe foi conferido. Um paciente que está incapacitado pode ser submetido a uma cirurgia salvadora sem o seu consentimento direto se não for possível obter tal consentimento devido à sua condição e se for do melhor interesse para a saúde do paciente. O médico, ao agir assim, estaria se baseando no exercício regular de um direito, ocorrendo o bem-estar do paciente.
  • IV – Atos Consentidos pelo Titular do Direito Violado: Quando uma pessoa consente ou autoriza determinado ato, mesmo que possa causar-lhe dano. Em procedimentos cirúrgicos arriscados, o paciente é informado sobre os riscos inerentes e autoriza a intervenção médica em termo de consentimento. Se ele aceitar os riscos e consentir com o procedimento, o médico não tem a obrigação de reparar, mesmo que haja consequências inesperadas.

O entendimento e a análise correta destas causas excludentes são essenciais para a prática médica. Elas fornecem diretrizes e proteção legal em situações complexas e desafiadoras, garantindo que o profissional possa tomar decisões ponderadas em benefício do paciente sem o temor constante de repercussões legais desproporcionais.

  1. A Importância da Comunicação Médico-Paciente

Um diálogo transparente e aberto pode evitar muitos conflitos. É essencial que o paciente esteja ciente dos riscos, benefícios e alternativas relacionadas a qualquer procedimento ou tratamento.

A relação entre médico e paciente vai muito além de uma simples consulta ou procedimento. É uma conexão construída sobre a confiança, onde o paciente deposita no médico sua esperança e saúde, e o médico se compromete a usar sua habilidade e conhecimento para cuidar da melhor maneira possível. O cerne dessa relação é a comunicação.

Estar doente ou enfrentar um problema de saúde pode ser uma das experiências mais assustadoras na vida de uma pessoa. Nesses momentos, a necessidade de informações claras, precisas e empáticas nunca é tão esvaziada. O paciente deseja entender sua condição, o que pode esperar pelo tratamento e quais os possíveis desfechos. Ignorar ou subestimar essa necessidade pode levar a ansiedade desnecessária e, em alguns casos, a decisões pessimamente informadas.

Por outro lado, a boa comunicação tem o poder de aliviar ansiedades, fortalecer a confiança e estabelecer um vínculo sólido entre médico e paciente. Quando o paciente é bem informado sobre os riscos, benefícios e alternativas, ele se sente empoderado para tomar decisões sobre sua saúde, e o médico, por sua vez, sente-se confiante de que está seguro em total acordo com os desejos e melhores interesses de seu paciente.

  1. O Papel da Defesa Médica

A medicina, como qualquer profissão, está sujeita a mal-entendidos, equívocos e, às vezes, argumentos infundados. Os médicos, mesmo os mais dedicados e habilidosos, não estão imunes a situações em que sua integridade e competência são questionadas em processos judiciais. É aqui que entra o papel insubstituível da defesa médica especializada.

A defesa médica é mais do que uma simples proteção contra ações judiciais. É uma garantia de que os médicos poderão exercer sua profissão sem o constante temor de repercussões jurídicas inesperadas. Ao fornecer suporte jurídico, orientação e representação, a defesa médica garante que os médicos possam focar no que realmente importa: cuidar de seus pacientes.

Além disso, em um ambiente onde a informação é rapidamente divulgada e onde a confiança de um profissional pode ser abalada em questão de horas, a defesa médica atua como uma guardiã da verdade. Ela busca aclarar as situações, garantindo que os fatos sejam adequadamente apresentados e que a justiça seja feita, em prol do médico, claro.

Em suma, enquanto a comunicação eficaz é o coração da relação médico-paciente, a defesa médica é o escudo que protege essa relação, permitindo que ela floresça em um ambiente de confiança mútua e respeito.

  1. Conclusão

A responsabilidade civil médica é um pilar fundamental no universo da saúde, garantindo que os pacientes recebam cuidados adequados e que os médicos possam exercer sua profissão com a segurança de que, atendidos corretamente, estejam protegidos. Em um cenário tão complexo, a informação é a chave: médicos e pacientes bem informados garantem uma relação mais harmônica e segura para todos os envolvidos.


[i] KFOURI NETO, Miguel, Responsabilidade civil do médico – 9. Ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018. Pág. 81.

[ii] AgInt no AREsp n. 2.343.699/DF, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 1/9/2023.

[iii] Tomé, Patrícia Rizzo. Responsabilidade Civil Médica. Lisbon. Edição do Kindle.

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